A Ideologia Disfarçada de Ciência que Ameaça Direitos Humanos
2024-12-02
Autor: João
A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ) acaba de aprovar uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que altera o artigo 5º da Constituição, buscando garantir "a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção". Essa proposta levanta sérias preocupações sobre os direitos reprodutivos das mulheres, pois uma mudança desse tipo poderia ameaçar o acesso ao aborto legal em casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia fetal, além de impactar negativamente práticas como a fertilização in vitro e pesquisas com células-tronco embrionárias. Se aprovada, essa emenda representaria um retrocesso significativo para a ciência e para os direitos das mulheres no Brasil.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 73 milhões de abortos são realizados anualmente em todo o mundo, e aproximadamente 45% são considerados inseguros, sendo que 97% desses ocorrem em países em desenvolvimento. Na África e na América Latina, a situação é ainda mais alarmante, com 75% dos abortos classificados como inseguros. A OMS reconhece o aborto seguro como um serviço essencial de saúde. No entanto, mesmo os abortos legais no Brasil têm enfrentado obstáculos, com relatos frequentes de mulheres que tiveram o acesso ao procedimento ilegalmente negado ou adiado maliciosamente.
A proposta constitucional tem defensores que argumentam que a ciência afirma que a vida se inicia na concepção, no entanto, essa visão simplista ignora a complexidade biológica do processo de fertilização. A concepção é, na verdade, um processo probabilístico, que não pode ser reduzido a um "momento mágico". Após a fertilização, o embrião ainda necessita de tempo para ser implantado no útero, processo que apresenta uma taxa de sucesso em torno de 50%, e isso pode levar até uma semana. Diante disso, como podemos definir o que significa o "momento da concepção"? Essa indefinição traz à tona diversas questões éticas e jurídicas que precisam ser cuidadosamente analisadas.
O temor é que, ao reconhecer um embrião como portador de direitos, a vida das mulheres seja severamente impactada. Seria razoável restringir a liberdade das mulheres após a relação sexual por conta de uma eventual gestação? O risco de investigações policiais sobre abortos espontâneos, muito comuns no primeiro trimestre, poderia se transformar em uma realidade aterradora se essa PEC seguir em frente.
Tais questões podem parecer absurdas, mas a história nos ensina que ideias obscuras podem se concretizar quando a sociedade é complacente. Momentos como o Holocausto, a saída do Reino Unido da União Europeia e a eleição de Donald Trump evidenciam que o irracional pode, de fato, se tornar realidade. O sono da razão gera monstros, e aqueles que se consideram racionais podem, inadvertidamente, facilitar o surgimento desses horrores.
Durante a pandemia, muitos se questionaram se a ciência ganharia prestígio após a crise. Contudo, minha resposta sempre foi de que a verdadeira essência da ciência seria distorcida em tentativas de manipulação política. Agora, mais do que nunca, vemos que essa apropriação indevida da ciência em debates políticos é uma tática antiga usada para controlar o corpo feminino.
No século XIX, mulheres que se mostravam à frente de seu tempo eram frequentemente diagnosticadas com "histeria". Esta clínica revela um padrão enraizado de misoginia que ainda persiste. A tentativa de rotular o discurso misógino como "científico" é uma tradição que persistiu e que o conservadorismo atual esforça-se em preservar. Precisamos permanecer vigilantes e mobilizar a sociedade para contestar essas propostas que ferem os direitos humanos e atacam os fundamentos da ciência.