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A Morte do Cão e o Instrumento Mágico: O Que Inspirou Suassuna em 'Auto da Compadecida'?

2024-12-29

Autor: Lucas

As Inspirações de Suassuna

A genialidade de Ariano Suassuna em suas obras, especialmente no clássico "O Auto da Compadecida", é inegável. Suassuna trouxe à vida uma rica tapeçaria de contos e personagens, impregnadados de elementos que tratam de temas como morte, ressurreição e valores religiosos. Em uma conversa exclusiva, o renomado escritor Zé Salvador, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, aprofundou-se nas influências que moldaram o universo de Suassuna.

Uma das principais referências é "O Cavalo que Defecava Dinheiro", obra de Leandro Gomes de Barros, considerado o "pai" da literatura de cordel. Publicado em 1865 na Paraíba, este conto narra uma trama onde a simulação de uma morte é realizada com o sangue de uma galinha e a ressurreição acontece através de um instrumento musical, que no filme é uma gaita usada por Chicó (Selton Mello) para trazer João Grilo (Matheus Nachtergaele) de volta à vida.

Outra obra que deixou sua marca no enredo de Suassuna é "O Testamento do Cachorro". Nesse conto, assim como no filme, personagens da alta sociedade tentam proporcionar um funeral digno ao cachorro de estimação da família, disputando a divisão dos bens após sua morte, uma crítica social que reverbera até os dias de hoje.

Ademais, "O Castigo da Soberba", de Silvino Pirauá de Lima, também inspirou Suassuna. A narrativa ilustra um homem que engana todos em seu julgamento divino e, como João Grilo, busca redenção ao apelar para Nossa Senhora, confrontando as acusações demoníacas.

Em relação ao famoso "Auto da Barca do Inferno" de Gil Vicente, Zé Salvador esclarece que, embora os nomes possam remeter a uma conexão, as histórias divergem. Suassuna traz um desfecho mais imediato para a morte de João Grilo, ao contrário da longa jornada pós-morte que encontramos na obra de Vicente, reminiscentemente ligada à "Divina Comédia" de Dante Alighieri.

'A Oração' de João Grilo

Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, agora sou escaler. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher. Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré!

A oração de João Grilo, que conquistou a popularidade após "O Auto da Compadecida", tem raízes profundas na literatura de cordel. Os versos, recitados por João Grilo antes do surgimento de Nossa Senhora (Fernanda Montenegro), que o defende das acusações do diabo (Luís Mello), fazem parte de um contexto riquíssimo da cultura popular nordestina, e a autoria é atribuída a um poeta conhecido como Canário Pardo.

Entretanto, a origem dessa oração é cercada de mistério. Embora Canário Pardo seja mencionado na peça original de Suassuna, a busca por referências diretas em outras obras se mostrou infrutífera, culminando em debates sobre a real fonte da criação.

Zé Salvador argumenta que as falas de Ariano Suassuna podem ter sido inspiradas por diálogos presentes em "O Castigo da Soberba", afirmando que a citação exata não aparece em qualquer publicação de literatura de cordel anterior. Essa criação é um exemplo da habilidade de Suassuna em entrelaçar a cultura popular com mistérios, risos e críticas sociais, refletindo sua profunda ligação com a tradição nordestina e o próprio fazer literário.

A obra de Suassuna, além de entretenimento, se apresenta como um convite à reflexão sobre as relações humanas, a espiritualidade e a riqueza das tradições culturais do Brasil. Sua capacidade de dialogar com temas universais de forma tão acessível torna suas produções verdadeiros legados culturais.