'Fiquei viciada em apostas após tratar Parkinson'; medicamento pode provocar vício?
2024-12-03
Autor: Fernanda
Dependência em jogos e compulsão desenfreada
Após nove anos de tratamento com levodopa, Irina Pires notou uma redução significativa dos sintomas de Parkinson, como tremores e contrações, especialmente nas pernas. No entanto, mudou drasticamente seu comportamento, trabalhando muito mais do que o usual e convertendo seu hobby de confeccionar malas em um segundo emprego. "Tinha comportamentos compulsivos, mas não prejudiciais. Cheguei a fazer cerca de 10 mil malas para vender e me tornei uma workaholic", relata.
O vício em jogos começou no ano passado quando, navegando na internet, Irina se deparou com um anúncio de apostas. "Cliquei, apostei, ganhei e, em seis meses, arruinei minha vida pessoal e profissional. Uma vez que se torna viciado, você perde a clareza. Fiquei viciada em apostas após o tratamento; cheguei a ter comportamentos semelhantes ao de um usuário de drogas", desabafa.
A família levou tempo para reconhecer a gravidade da situação. O relacionamento de 23 anos chegou ao fim, e Irina se afastou dos pais. "Experimentei pensamentos suicidas, embora nunca tenha tido um plano concreto. Em um momento de desespero, contratei uma clínica para internação e fiquei três meses sem ver meu filho", lembra.
As dívidas se acumularam e a justiça portuguesa a declarou insolvente quando as obrigações superaram seu patrimônio e rendimentos.
Remédio pode provocar vício em comportamentos?
Embora a bula do levodopa relacione alguns efeitos colaterais, um estudo de 2005 da revista JAMA Neurology sugere uma correlação — não causal — entre o uso do medicamento e o desenvolvimento do vício em jogos em pacientes com Parkinson. Dos 11 pacientes analisados, sete não tinham interesse anterior em jogos, mas desenvolveram compulsões relacionadas a apostas. A interrupção do medicamento levou à reversão do comportamento em alguns casos, o que sugere uma conexão entre o remédio e o vício patológico.
Além do vício em jogos, pacientes com Parkinson podem apresentar outras alterações comportamentais, como compras compulsivas e hipersexualidade. As razões para essas mudanças ainda não estão totalmente claras, mas sabe-se que medicamentos dopaminérgicos têm papel relevante. Segundo Ana Morgadinho, neurologista especialista em doenças do movimento em Portugal, a dopamina é fundamental para o controle motor, mas também está ligada ao prazer e à recompensa, podendo alimentar um ciclo vicioso de busca por sensações prazerosas.
Wuilker Knoner Campos, doutor em neurociências e presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, enfatiza que o levodopa é usado para repor a dopamina deficitária no cérebro, crucial para o controle dos movimentos. No entanto, ele alerta para o potencial de vícios: "Cada ação prazerosa causa liberação de dopamina, levando a um desejo compulsivo pela repetição dessa ação, podendo culminar em comportamentos patológicos, como o jogo".
No caso de Irina, Morgadinho aponta que, embora houvesse uma predisposição para distúrbios de controle de impulsos, a combinação da doença e dos medicamentos contribuiu consideravelmente para o surgimento de comportamentos patológicos. Para um tratamento eficaz, ela sugere uma abordagem cuidadosa e multidisciplinar e, se necessário, a suspensão de medicamentos de maior risco.
A importância do tratamento contínuo
Apesar de ter passado três meses internada em uma clínica psiquiátrica em Portugal, Irina não conseguiu livrar-se da compulsão por apostas. "Queria jogar mais para tentar recuperar perdas. Nunca fui a um cassino, tudo era online, o que facilitou o recaída", confessa. No entanto, sua saída começou há nove meses, quando se juntou ao grupo Jogadores Anônimos, onde encontrou apoio na metodologia semelhante à dos Alcoólicos Anônimos.
"No Brasil, a dinâmica é diferente. O acolhimento inicial é muito humano e cuidadoso. Estou há 210 dias 'limpa' de jogos. Conseguir controlar a compulsão foi possível seguindo os protocolos da neurologista, ajudada pelo grupo e praticando esportes", comemora Irina.
Conforme o tempo passou, ela teve que optar entre lidar com os gatilhos da compulsão ou ver os sintomas de Parkinson agravarem. "A decisão é minha: ou diminuo a dose do remédio e agravo os sintomas, ou aprendo a lidar com os gatilhos e continuo o tratamento", afirma.
Embora tenha conseguido se afastar das apostas por quase oito meses, a enfermeira revela que ainda mantém cuidados chamados de "controle de estímulos externos". "Outra pessoa cuida das minhas finanças e as apostas estão bloqueadas no meu celular", finaliza Irina, mostrando que a luta contra o vício é constante e exige vigilância.