
Marés instáveis e peixes escassos: pescadores enfrentam os efeitos perturbadores da crise climática
2025-04-01
Autor: Ana
Até os primeiros anos dos anos 2000, pescadores da Ilha do Cardoso, localizada no litoral sul de São Paulo, tinham a certeza de que as marés altas ocorriam durante o inverno, especificamente entre julho e agosto. Atualmente, essa previsibilidade se tornou um desafio.
"Nos últimos tempos, notamos três marés altas durante o verão e duas na primavera, por exemplo", compartilha Jorge Antônio Cardoso, residente da comunidade caiçara Enseada da Baleia, no município de Cananeia, na Ilha do Cardoso.
A irregularidade das marés é um dos três impactos mais significativos da crise climática sobre as comunidades pesqueiras, conforme aponta o recente relatório intitulado Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Pesqueiras no Brasil, que foi lançado na última terça-feira (1º).
A pesquisa, conduzida pelo Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), abrangeu 16 estados brasileiros e revelou que impressionantes 97,3% das 450 comunidades pesqueiras participantes estão sentindo os efeitos da mudança climática. Além da instabilidade das marés, o aumento das temperaturas e a diminuição da variedade de espécies de peixes estão entre os impactos mais citados.
Cardoso nota alterações no padrão das marés há mais de 15 anos. "A frequência das marés altas aumentou consideravelmente, ocorrendo durante o ano inteiro", explica ele.
Na Praia de Maracaípe, no litoral sul de Pernambuco, a pescadora Helena do Nascimento, também conhecida como Leninha, notou essa alteração, embora não consiga identificar exatamente quando iniciou. "Antes, esperávamos grandes marés somente em duas épocas do ano: uma no início de março e outra no final, e o mesmo ocorria em agosto. Agora, não sabemos quando isso vai acontecer", lamenta. Em várias ocasiões, mesmo no período esperado, as marés chegam com volumes superiores ao que costumavam, dificultando ainda mais a rotina pesqueira.
As marés são fundamentais para os pescadores, pois elas indicam as melhores áreas para a pesca e quais espécies estão mais abundantes. Segundo Cardoso, "as marés nos ajudam a planejar nossos dias de trabalho, informando sobre as condições climáticas e as previsões do tempo".
A Instabilidade e a Escassez de Recursos
Leninha enfrenta dificuldade em encontrar aratu, um tipo de caranguejo anteriormente abundante que, até 2020, garantia a subsistência de sua família. "O manguezal fica totalmente submerso e, em dias de maré baixa, a quantidade que conseguimos capturar ainda é muito inferior ao que era antes", diz. A pescadora observa que a conjunção das marés irregulares e o aumento da temperatura da água resultaram na drástica redução da oferta dessa espécie.
"Hoje, está muito difícil sustentar nossa família apenas com a pesca. A renda diminuiu, e muitos de nós dependemos do auxílio do governo federal", desabafa. A diária de pesca que antes rendia três a quatro quilos de aratu agora requer de dois a três dias de trabalho para coletar apenas um quilo.
Com a escassez de peixes, os pescadores estão sendo forçados a navegar distâncias cada vez maiores. "Não conseguimos mais pescar perto da costa. Estamos indo cada vez mais longe", comenta Rita de Cássia da Silva Costa, uma pescadora de Macau, Rio Grande do Norte, que pratica a pesca desde criança.
Agora, aos 45 anos, ela se entristece ao ver a diminuição da quantidade de mariscos. "Cinco anos atrás, eu recolhia facilmente 20 a 30 quilos por viagem. Hoje, mal consigo cinco quilos", lamenta. A diminuição de peixes e mariscos passou a ser evidente especialmente após 2020, mas suas observações sobre as mudanças climáticas datam de pelo menos uma década.
Além da quantidade, Cardoso e outros pescadores notam também uma mudança no período de captura dos pescados. "Não temos mais a safra de peixes como tínhamos antes. Essa mudança afecta não só a quantidade, mas também o tempo de pesca", complementa Costa sobre a escassez de tainhas, que costumavam ser capturadas em grandes quantidades.
Na região da Ilha do Cardoso, as safras de tainha estão cada vez mais difíceis de prever, uma vez que a chegada dos cardumes não segue mais o padrão estabelecido de antes. "As comunidades têm observado esse atraso e a redução da intensidade da chegada do pescado", revela Henrique Callori Kefalás, coordenador executivo do Instituto Linha D’Água, que tem uma década de história assessora comunidades costeiras.
Kefalás destaca que os pescadores estão cientes das mudanças ambientais há pelo menos 20 anos. Essas modificações revelam um desafio significativo para comunidades que se baseiam em ciclos de natureza que eram previsíveis até então.
Preservação da Cultura Pesqueira
Na pesquisa da CPP, quase 80% dos pescadores afirmam estar lidando com a desvalorização da cultura pesqueira tradicional. Kefalás confirma que muitas comunidades estão lutando para entender como essas mudanças estão afetando conhecimentos que foram transmitidos de geração em geração.
Jorge Cardoso, que aprendeu a arte da pesca com seu pai, destaca a importância dos cercos fixos, uma tradição caiçara adaptada. Estas estruturas rústicas utilizam madeira e taquara para capturar peixes, e um cerco bem feito pode capturar até mil tainhas, ajudando a sustentar várias famílias.
No último ano, a primeira safra de tainha chegou muito antes do esperado, deixando muitos pescadores desprevenidos. Cardoso relata que muitas famílias perderam essa oportunidade, o que resultou em dificuldades financeiras ainda maiores.
Segundo Kefalás, as comunidades de pescadores são as primeiras a sentir as consequências da crise climática, funcionando como uma espécie de alerta para toda a sociedade. "Os conhecimentos tradicionais dessas populações devem ser utilizados para enfrentar a crise", diz ele, enfatizando que estas comunidades precisam ser ouvidas no desenvolvimento de estratégias adaptativas.
Por fim, Leninha não só ensinou a pesca a seus quatro filhos, mas também lidera uma associação de mulheres pescadoras em Maracaípe, visando restaurar a vegetação do mangue que tem sido drasticamente afetada. "Nós, como pescadoras, podemos contribuir para a conservação do mangue, o que pode ajudar a moderar a temperatura da água", conclui. A ação de replantio está prevista para ocorrer nos próximos dias.