Ciência

Onde você estava no 11/9? Como as 'memórias falsas' moldam nossa identidade

2024-10-03

É comum ter memórias que não correspondem exatamente à realidade, um fenômeno que especialistas chamam de 'memórias falsas'. Segundo o psicólogo social Gerald Echterhoff, da Universidade de Münster na Alemanha, "as memórias são formadas de maneira dinâmica, influenciadas por fatores sociais e suscetíveis a alterações inadvertidas."

É provável que minha lembrança de estar diante de uma vitrine de TVs no dia dos ataques de 11 de setembro tenha sido influenciada por filmes de catástrofe ou relatos de outras pessoas. Costumamos nos apegar a essas lembranças, pois elas nos ajudam a entender quem éramos e a construir a narrativa da nossa vida, questionando: "Como eu era naquela época?"

Se eu pudesse recordar experiências mais vívidas, isso enriqueceria minha história pessoal e permitiria um autoconhecimento mais profundo. Por outro lado, quem sofre de perda de memória acaba se distanciando de sua verdadeira identidade. Doenças como a demência e a senilidade afetam a memória, fazendo com que a pessoa se esqueça de si mesma.

Conexões cerebrais e o mistério das memórias

Dada a natureza discutível de tantas recordações, a pergunta que surge é: quem somos, realmente? O segredo pode estar no modo como armazenamos nossas memórias. Pesquisas mostram que as lembranças são registradas no cérebro através de conexões neurais, especialmente em regiões como o hipocampo e a amígdala. Essas novas memórias se desenvolvem através da formação de sinapses entre os neurônios, criando uma rede intrincada de ligações.

Para que as memórias perdurem, elas precisam ser ativamente lembradas. Evocá-las reforça essas conexões neuronais. No entanto, o ato de esquecer é como podar essas ligações. A negligência ou confusão enfraquecem a memória, levando o cérebro a preencher lacunas com narrativas externas.

O problema é que o cérebro armazena memórias falsas exatamente da mesma forma que memórias verdadeiras. Até o momento, como aponta Echterhoff, não foi encontrada uma maneira completamente confiável para distinguir, a nível cerebral, entre o que é verdadeiro e o que é fabricado.

O caso Ingram: verdade ou sugestão?

Um caso emblemático é o de Paul Ingram, preso em 1988, acusado de abusos sexuais por suas filhas. Sem recordar os atos, ele inicialmente refutou as alegações. No entanto, ao longo do tempo, começou a se questionar, influenciado pela fé e pela sugestão do interrogador. Em um processo que culminou na sua condenação, ele ofereceu detalhes sobre abusos que podem ter sido implantados em sua mente durante os interrogatórios.

Um segundo psicólogo, após extensas entrevistas, concluiu que as memórias dele haviam sido criadas por meio de técnicas de sugestionamento. Infelizmente, esse depoimento não foi aceito durante o julgamento, e Ingram cumpriu pena até 2003.

Echterhoff destaca que esse caso ilustra como interações sociais podem alterar nossa memória verdadeiramente. Outros estudos mostraram que testemunhas de eventos traumáticos às vezes descrevem seus feitos baseadas em cenas de filmes de terror, reforçando a ideia de que a memória é maleável.

Memórias pessoais e sua influência cultural

No entanto, a ideia de que memórias podem ser distorcidas ou manipuladas tem gerado controvérsias, especialmente no contexto dos movimentos #MeToo e Vidas Negras Importam. Memórias verdadeiras podem emergir após anos, como demonstraram os processos contra figuras como Harvey Weinstein. Seus advogados tentaram desacreditar as vítimas com o argumento de memórias falsas, mas isso não surtiu efeito, pois elas se uniram em torno de uma narrativa comum.

Echterhoff observa que campanhas como essas mudaram a forma como percebemos o papel da memória na formação da identidade. As memórias não são apenas pessoais, mas também podem ser experiências culturais compartilhadas. Hoje, entende-se que as barreiras entre o 'eu' e as memórias de outros são fluidas, e as experiências coletivas moldam nosso entendimento sobre nós mesmos.

"A ideia de comunidades formadas por memórias compartilhadas, frequentemente baseadas em sofrimento, tem se tornado mais forte", aponta Echterhoff. Contudo, revisitar a memória cultural de uma nação pode gerar divisões, como a Alemanha tem percebido em suas discussões sobre seu colonialismo.

Em minha perspectiva, a falsa lembrança de ter assistido aos ataques de 11 de setembro na televisão não é apenas um ponto de confusão pessoal, mas também um elemento vital que ajudou a moldar minha identidade cultural. Essa falsa memória permite que eu compartilhe um momento definidor do século XXI com um grupo maior, conectando-me a uma história coletiva que, mesmo que distorcida, contribui para a trama do que sou.